Foto: FAE Business School | G1
Ângela Mathylde Soares*
A Constituição Federal garante o direito à educação para todas as crianças, incluindo aquelas com autismo e outras deficiências, mas a realidade em muitas cidades brasileiras ainda está distante desse princípio. Recentemente, o goleiro do Cruzeiro, Cássio, desabafou nas redes sociais sobre as dificuldades de matricular sua filha, de 7 anos, em escolas na capital mineira. Segundo ele, apesar de algumas instituições se declararem inclusivas, a presença do acompanhamento profissional que a criança possui, desde pequena, tem sido um impeditivo.
A luta das famílias por uma escolarização adequada não se resume à boa vontade dos pais. É necessário a escola estar preparada e segura, com profissionais capacitados e atentos às necessidades de cada aluno, sem prejudicar a dinâmica da turma. Uma inclusão mal planejada ou sem suporte especializado provoca insegurança, tanto para a criança quanto para a escola.
A Lei Berenice Piana (Lei nº 12.764/2012) estabelece a Política Nacional de Proteção dos Direitos das Pessoas com Transtorno do Espectro Autista, reconhecendo-as como pessoas com deficiência e garantindo acesso à educação inclusiva, com acompanhamento especializado e elaboração de Plano Educacional Individualizado (PEI), adaptado às necessidades do estudante, sem custos extras. A lei reforça que as escolas devem proporcionar igualdade de oportunidades, adotando estratégias pedagógicas específicas e ambientes preparados para o atendimento individual.
O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é um transtorno do neurodesenvolvimento que compromete a comunicação, a interação social e apresenta padrões de comportamento repetitivos e interesses restritos. Atualmente, o TEA é classificado pelo nível de suporte necessário:
* Nível 1 – Suporte leve: o estudante necessita de apoio em algumas atividades sociais e acadêmicas, mas consegue ser relativamente independente.
* Nível 2 – Suporte moderado: requer assistência consistente em várias áreas da vida escolar, com acompanhamento profissional frequente.
* Nível 3 – Suporte intensivo: demanda suporte contínuo e especializado em todas as atividades escolares e sociais, sendo imprescindível o acompanhamento por profissionais qualificados.
Independentemente do nível, o acompanhamento especializado é obrigatório, e a presença de acompanhantes, sem formação específica dentro da sala de aula, fere a legislação, podendo comprometer o direito à educação inclusiva e o desenvolvimento seguro da criança.
Obrigações da escola
1. Planejamento pedagógico individualizado (PEI): elaborar o PEI conforme necessidades da criança e revisá-lo periodicamente.
2. Capacitação de professores e pedagogos: garantir que a equipe escolar possua formação e experiência em inclusão e TEA.
3. Ambiente adaptado: preparar a sala de aula, materiais e atividades para inclusão plena, respeitando o nível de suporte necessário.
4. Apoio profissional qualificado: disponibilizar psicopedagogos, psicólogos, terapeutas ocupacionais ou outros especialistas para acompanhamento formal.
5. Integração com a família: manter comunicação constante com pais e responsáveis sobre evolução, dificuldades e estratégias de ensino.
6. Cumprimento da legislação: respeitar o direito à educação inclusiva e impedir que exigências ilegais, como acompanhantes não qualificados, sejam impostas.
Obrigações da família
1. Informar necessidades e acompanhamento externo: apresentar relatórios médicos, terapêuticos e de avaliação, garantindo que a escola compreenda o nível de suporte necessário.
2. Participar no PEI: colaborar na construção e atualização do plano de ensino individualizado.
3. Monitorar a implementação: acompanhar o dia a dia escolar, observando se as estratégias previstas estão sendo aplicadas corretamente.
4. Articular apoio profissional externo: manter contato entre a escola e profissionais de saúde que acompanham a criança.
5. Denunciar irregularidades: caso a escola descumpra a lei ou imponha medidas ilegais, acionar o Ministério Público, Apae ou advogados especializados.
Trabalhar com alunos com TEA é desafiador, porém, isso não pode ser usado como justificativa para a recusa de matrícula. Todas as escolas brasileiras, públicas e privadas, têm a obrigação de se adaptarem às diferentes demandas educacionais, respeitando o nível de suporte necessário e assegurando acompanhamento profissional qualificado.
O caso do goleiro Cássio serve de alerta para instituições e gestores, reforçando que o cumprimento da legislação é indispensável. A luta das famílias vai muito além do desejo de matricular um filho: trata-se de garantir um ambiente seguro, estruturado e inclusivo, favorecendo o aprendizado e o desenvolvimento.
A recusa de matrícula pode e deve ser denunciada ao Ministério Público, que orienta sobre direitos e deveres. A Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae), junto a advogados especializados, oferece suporte jurídico e acompanhamento para garantir o direito à educação inclusiva, incluindo processos e pedidos de indenização quando necessário.
O exemplo do goleiro é apenas a ponta do iceberg de milhares de casos que passam despercebidos diariamente. As famílias não devem desistir. A persistência na defesa dos direitos dos filhos é essencial para a construção de uma educação realmente inclusiva, ética e transformadora.
* Neurocientista, Psicanalista e Psicopedagoga
“Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornal Hoje em Dia”.
Fonte: Hoje em Dia