O dia era 14 de dezembro, estava a conversar com a minha tia Maria.
Em uma carta (1924) a Drummond; o poeta também Mário de Andrade, cujo homem era
negro, escreveu: “Nós temos que dar ao Brasil o que ele não tem e que por isso até agora não
viveu, nós temos que dar uma alma ao Brasil e para isso todo sacrifício é grandioso, é sublime
(…).” E nós, barbarenses, temos que dar essa alma para nossa Santa Bárbara também!!!
‘Vote em Lia para prefeita! E você terá uma Santa Bárbara mais que perfeita!!! E não vote em
Raquel. Se não, nossa cidade vai para o beleleéu!’
Ouvi isso da minha candidata à reeleição da prefeitura da Velha Pacatu. Num discurso em um
comício na comunidade do Tomba. Contou-me tia Maria. E ela continuou: há uma maldição
nessa cidade de Santa Bárbara em que nenhum prefeito se reelegeu. E a prefeita em questão,
Lia Lins, já estava no fim do seu mandato. No sétimo ano. Conta-se a história que ela era de um
partido e o Esaú de outro. Ambos sairiam candidatos, mas, para não perder para a
concorrência, se juntaram. E venceram! Mas ruge entre os barbarenses, que o acordo foi que
Lia nos primeiros quatros anos seria prefeita, mas no próximo seria o Esaú. Esaú Valadares é
filho de um major aposentado. O povo, o teme porque dizem as más línguas, que não podia
criticar o governo, que o pai tomava as dores. Lia era da comunidade da Carioca. Uma
comunidade quilombola de Santa Bárbara. Sua carreira política é invejável; foi líder do Grêmio
Estudantil no Colégio São José, presidente de Associação Comunitária, vereadora, presidente
também dá Câmera dos Vereadores e do seu partido. Foi líder do Movimento Negro de Santa
Bárbara. Detalhe: restituiu o seu partido que havia perdido forças. E que teve de voltar para
base… Não consta na sua biografia nenhuma formação acadêmica. Ela só dizia que era teimosa
e estratégica. Já o Esaú, o vice de Lia, nasceu como promessa da família Valadares de sê-lo um
grande político. De seguir os passos do seu bisavô e avô. Fez faculdade de direito na UFRJ. Teve
aulas particulares de análise do discurso. Sua alfabetização foi numa escola católica em Lisboa.
Um grande conservador da moral, da ética e dos bons costumes. Teve como inspirações os
benditos Mussolini e Donald Trump. Nas horas vagas, caçava nas caatingas do seu avô. Essa
cidade foi construída com a força indígena e quilombola, com às mãos dos portugueses. É tudo
que parece.
Minha tia Maria que trabalhara muitos anos para a família de Esaú, até mesmo antes do seu
nascimento. Ouvia sempre a conversa por detrás da porta…
Um dia Lia chegou agoniada na casa de Esaú para conversar com ele. E ele demorou a chegar.
Enquanto ela o aguardava, minha tia serviu-lhe requeijão, doce de goiaba e café. E a prefeita
Lia, vale lembrar, foi a primeira prefeita a ser eleita nessa cidade. Ela começou a desabafar com
minha tia Maria:
— Maria, eu não aguento mais! Esaú não está nem aí para o povo. Fizemos um Mercado de
arte, mas até agora não tem arte e nem tão pouco artistas. Pintamos, e construímos e
reconstruímos coisas… Mas o meu povo não está satisfeito. Eu não gosto dessa política, nem
da política assistencialista. Prometemos concurso público, e nada até agora. Nós temos que
servir o povo. Afinal foram eles que nos pôs aqui.
Respondeu minha tia: — Eu não entendo nada de política, não gosto também. Mas estou aqui
para ouvi-la.
— Ah, se tu não gosta… já dizia o Platão: Não há nada de errado com aqueles que não gostam
de política, simplesmente serão governados por aqueles que gostam.
— Mas é preciso ser intelectual, como o sr. Esaú sempre fala.
— Nem sempre. O intelectualismo também é uma coisa ruim; ele é o grande culpado do
Massacre do Carandiru, da Ditadura Militar no Brasil, da destruição da Etiópia, e dos Judeus.
— Eu mesmo não tenho partido. Não sou de esquerda e nem de direita. Sou do porão.
Imagine você, com insegurança alimentar, sem trabalho, vai julgar que é de algum partido?
Mas a sra. é muita má também… Só foi ter o poder, que virou outra pessoa. Isso é o povo que
fala, sobretudo, os que cresceram contigo. Perdoe-me a irreverência!
— Quem não te conhece julga que você vive 90 graus. Quem te conhece diz que você vive 180
graus. Mas na real você vive 360°!
— E como a sra. consegue viver assim? A gente tem uma imagem que vocês vivem em
harmonia. Só há às controvérsias da oposição. Essas obras são de fachadas, né?! Porque
quando vai ao um galinheiro, não se pode furtar o galo.
— Ah, minha querida Maria, isso é análogo à um casamento arranjado.
Tu já reparastes que pobre tem umas riquezas poéticas; põe roupa no bujão de gás, põe um
galho de planta quando não encontra a pessoa em casa, mantém a casa com os enfeites de São
João e Natal, mesmo depois que se passou. Os talheres, o foro do sofá, cama que nunca foram
usados; eles deixam para os visitantes… Ah, vou aí quando o sol esfriar!
Minha tia continuara:
— Ah, meu sobrinho, lembro sempre do jeito que o sr. Esaú falava: “no tocante a questão da
política é: Deus, Pátria e Família. Ele gritava bem alto: “O Brasil não tem povo, tem plateia”.”
Lia, meu filho, tramou com o seu partido; comprou os seus colegas para votar nela, e não no
Esaú, para sê-lo o próximo prefeito. Foi numa noite da Quaresma. Dona Lia prometera trabalho
para o seu povo, e nada deu. Pôs os de fora para trabalhar no governo; há também esses
boatos. A Lia era uma mulher preta retinta preterida. Não chegou a casar. Dizem que ela sofria
de Transtorno Bipolar. Era muita linda. Uma beleza que dispensava qualquer sexualização. Era
tão linda que deixava qualquer um constrangido. Era digna da ressurreição. Eu posso testificar!
Tia Maria ganhava 300 reais para trabalhar para os Valadares. O sorriso não saia do seu rosto;
de gratidão. E nunca teve uma seção com um coach. Mas ela é vanguarda! O Esaú namorou o
Governador do estado para apoiá-lo na reeleição. Mesmo eles sendo de partido diferentes.
Dona Lia sempre buscou ser uma prefeita para o povo, sobretudo pobre. Mas o sr. Esaú era
muito contra tudo isso. A metade da família dele trabalhava no governo. Na Secretária de
Educação mesmo, era sua cunhada.
É meu caro leitor, Antônio Gramsci já dizia: “O Estado é a organização econômico-política da
classe burguesa. O Estado é a classe burguesa na sua concreta força atual.”
No mais, tia, o que aconteceu com Lia e Esaú?
— Lia Lins ninguém sabe o que aconteceu de fato. Apareceu uma carta supostamente escrita
por ela com uma frase no final: “Saio da vida para entrar na história.” Uns dizem que ela se
suicidou. Já outros dizem que o sr. Esaú a matou. Não se achou até hoje o seu corpo. E o sr.
Esaú Valadares ficou como prefeito no lugar da Lia por um tempo. Mas renunciou e foi morar
no Estados Unidos. (Se vivo estar, só Deus sabe) Porque o povo não queria-o como prefeito.
Gregório, por que tu não saí candidato nessa próxima eleição para prefeito, meu sobrinho?
— Um poeta como eu não pode ser um político partidário. Porque o poeta escreve às dores do
povo, denuncia o ódio, a miséria e declama o amor também. Quem sabe um dia, um secretário
de educação.
Com sete anos, Labão enganou a Jacó. Com seis dias Deus fez o mundo, e no sétimo
descansou. E Lia no sétimo ano, jaz…
“I have a dream”
Por: Machado de Jesus nascido em 10 de dezembro de 1996 na cidade de Santo Amaro da Purificação, Bahia. É poeta e autor de dois livros, além de ser evangélico. Atualmente, está cursando Letras – Português na UEFS e reside na comunidade de Chapada, localizada no município de Santa Bárbara, Bahia.